Durante minha vida acadêmica, estive preocupada em compreender os fluxos migratórios para o Brasil, dessa forma analisando os caminhos que são percorridos não apenas atualmente, mas também no que toca legislações e visões que, na teoria, não fazem mais parte de nossa vivência atual. Durante minhas pesquisas, e tendo como base a ideia que se tem de que o Brasil é um local acolhedor para migrantes, me perguntava: “para quais migrantes o Brasil pode ser considerado um país acolhedor?”.
Refletindo sobre recortes de raça, as legislações migratórias brasileiras são baseadas políticas eugenistas, em pressupostos de superioridade branca e na formação de uma identidade nacional brasileira que tinha como fundamento a branquitude. Tendo essa questão como base para iniciar o debate, aciono o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que proíbe a entrada de pessoas negras no Brasil, ao mesmo tempo que afirma ser inteiramente livre a entrada de pessoas no território, assim, sendo crime que essas pessoas entrem no Brasil. Assim, mais uma vez o questionamento é trazido quem é bem-vindo no Brasil?
Ainda me referindo a políticas migratórias anteriores, analiso quem são as pessoas que são bem recebidas pelo governo brasileiro, sendo elas os europeus brancos, os quais era entendidos como “trabalhadores de bem”, “agricultores”, “pessoas que poderiam ajudar o Brasil a crescer. Por trás dessas afirmações e desses tipos ideais de migrantes, estavam os pressupostos raciais e os marcadores sociais da desigualdade que diferenciavam esse migrante de um migrante negro.
Partindo para uma atualização de nossa lei migratória atual, a Lei nº 13.445/2017, conhecida popularmente como Lei de Migração de 2017, traz inovações gigantescas para o cenário migratório brasileiro, entendendo que todos podem migrar, sendo esse um direito humano, apoiado pela ONU. Porém, há uma diferença gigantesca entre teoria e prática, e a real forma que esses migrantes são recebidos no território brasileiro. Para melhor entender essa questão, irei abordar duas histórias de migrantes, os quais trarei nomes fictícios, que foram meus alunos em um projeto em que fui professora voluntária de português. O primeiro migrante é senegalês, se chamava Carlos, e vivia no Brasil tinha 4 anos, certo dia quando estávamos lanchando juntos, ele me contou que uma vez, no período em que ele ainda estava na fronteira brasileira, um dos policiais federais que ali estava para poder ajudar no apoio aos migrantes e refugiados daquela localidade, lhe disse a seguinte frase “olha macaco, ou você aprende a falar português direito ou não vai conseguir nada aqui no Brasil não, nem comida”. Isso porque Carlos não conseguia falar o que desejava comer naquele dia específico, pois não sabia pronunciar as palavras da forma considerada correta, nos padrões linguísticos nos quais estamos acostumados.
Antes de refletir sobre essa primeira experiência, já narro a segunda situação, contada por meu aluno Henrique, um alemão branco, que havia se mudado para o Brasil fazia alguns meses na época, e tinha vindo para o país porque havia se apaixonado por uma brasileira e eles teriam um filho. Henrique me contava sobre como todos os brasileiros era solícitos com ele, como todos faziam o máximo para entender o que ele dizia e que, estando no Brasil ele “se sentia mais em casa do que na sua própria casa”.
Esses dois casos específicos me fazem retomar o título da matéria “Quem pode (ou não) entrar no território brasileiro?”. Pois por mais que hoje nossa legislação migratória não seja como a do passado que expulsava legalmente pessoas negras do território nacional, essa repulsa é feita socialmente, não acolhendo esses sujeitos no Brasil, os entendendo como inferiores e não merecedores de estarem no país. Dessa forma, a partir dessas duas experiências completamente distintas conseguimos compreender que ainda há um tipo ideal de migrante, e ele ainda é o branco europeu, e que ainda se tem como justificativa que “essas pessoas são mais evoluídas economicamente”, “eles têm uma melhor formação”, “são pessoas que podem fazer o Brasil crescer”. Assim, pressupostos racistas são reafirmados e atualizados a cada geração, se baseando em ideários de crescimento econômico e negando os marcadores sociais da desigualdade que os regulam.
Artigo por: Lara Noronha, mestranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), graduada em Antropologia (2021) e licenciada em Ciências Sociais (2020) pela Universidade de Brasília.em como interesse principal de pesquisa migração e acolhimento, com foco em projetos de ensino de português como língua de acolhimento para migrantes e refugiados. É pesquisadora no Laboratório de Migrações Internacionais (LAEMI/ELA/UnB) do Departamento de Estudos Latino Americanos, Laboratório etnografia das circulações e dinâmicas migratórias (MOBILE/DAN/UnB) e o Laboratório de Etnografias em contextos africanos (ECOA/DAN/UnB).