“Se eu não tivesse estudado, eu seria mais uma Madalena”
O parentesco como atualizador da falsa abolição brasileira Resumo O presente trabalho tem por objetivo traçar uma reflexão inicial sobre uma situação muito comum, mas pouco analisada com maior densidade na literatura das ciências sociais brasileiras: o caso de meninas-moças negras e pobres que têm a sua infância e juventude roubada para trabalhar na casa de padrinhos e madrinhas, estes frequentemente pertencentes às elites locais. Para isso, traço a história de vida de Val, que aos nove anos foi morar com a sua madrinha e, a partir dela, reflito sobre como essa estratégia de parentesco a partir do compadrio atua como uma atualização da dominação racial no período pós-abolição brasileiro. Introdução Quando criança, eu fui babá de filhinho de madame, você sabe que a criança negra começa a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse pra casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da casa. Eu reagi muito contra isso e então o pessoal terminou me trazendo de volta pra casa (GONZALEZ, 2020, p. 19). Em uma noite de domingo de dezembro de 2020,foi transmitida no programa Fantástico, da Rede Globo, uma reportagem que denunciava o caso de Madalena Gordiano, uma mulher negra de pele retinta de então 46 anos que desde os oito anos de idade vivia em situação análoga à escravidão pela tradicional família mineira Milagres Rigueira. Madalena era privada de contato com pessoas que não viviam na casa, do acesso à saúde adequada, do salário que deveria ser pago a ela, de direitos trabalhistas e da pensão referente ao seu matrimônio com Marino Lopes, tio da esposa de Dalton César, que por sua vez é filho de Maria das Graças Milagres Rigueira, a quem Madalena foi deixada por sua mãe biológica, que possuía muitos filhos e não tinha condições de criá-los, na promessa de que Maria das Graças adotasse formalmente a então menina. No seio da tradicional família, Madalena foi “herdada” de mãe para filho, como se ela fosse um bem que é passado de uma pessoa à outra, sem direito a desejos, vida própria e à dignidade humana. A algumas centenas de quilômetros dali, em uma cidade goiana no entorno do Distrito Federal, Val assistia à reportagem-denúncia com lágrimas nos olhos. Ao ver a história de Madalena ser narrada, percebeu que tinha um pouquinho da sua história na tela daquela televisão. Ela imediatamente pegou seu celular, mandou uma mensagem para seu filho mais novo e disse “se eu não tivesse estudado, eu seria mais uma Madalena”. Talvez aquele momento foi o gatilho para que ela repensasse toda a sua vida e seu lugar no mundo. Como o/a leitor/a já deve perceber, o presente relato etnográfico tem por objetivo apresentar a história de vida de Val, uma mulher negra, décima filha que sobreviveu para além do primeiro ano de vida de um casal camponês da zona rural de Formosa, cidade goiana que atualmente conta com um pouco mais do que 120 mil habitantes. A partir da vida de Val, que também conta a história de tantas outras meninas negras brasileiras que tiveram suas infâncias ocupadas por panelas, roupas para lavar e crianças para cuidar, viso discorrer sobre como o racismo brasileiro se atualiza a partir dos laços de parentesco, na casa e no cotidiano dessas mulheres negras, interseccionando marcadores de gênero, raça, classe e geração (COLLINS; BILGE, 2021; GONZÁLEZ, 2020). Longe de pretender trazer grandes respostas para essa questão que ao mesmo tempo é tão central na formação de algo que poderemos chamar de parentesco brasileiro e tão negligenciada nos tradicionais circuitos das ciências sociais nacional, trago aqui olhares e propostas analíticas primeiras para uma questão que me persegue desde os meus primeiros dias de vida. Para isso, discorro em um primeiro momento sobre a história de vida da minha interlocutora principal a partir de situações e trechos da sua trajetória contados a mim ao decorrer dos últimos anos e, na sequência, traço algumas reflexões que me surgiram a partir das suas palavras A trajetória de Val Em 1979, quando Val tinha apenas 9 anos, seu pai faleceu em decorrência de um acidente no trato do gado de sua roça. Sua mãe, Maria, mãe de dez filhos que sobreviveram à gestação e aos difíceis primeiros meses de vida, sentiu-se sozinha com a partida do seu companheiro de tantos anos e viu-se sem condições de criar com ela todas aquelas crianças e adolescentes, uma vez que ela era uma mulher analfabeta e que, para além do trabalho da roça, só via como alternativa o trabalho doméstico para outras famílias. Assim, mudou-se para a casa que ela e seu marido haviam construído no que então era a periferia de Formosa, pois ali encontraria trabalho mais facilmente. Com os filhos homens1crescidos e quase todos já trabalhando, Dona Maria precisava lançar mão de alguma estratégia para fazer com que as suas filhas mais moças prosperassem, tendo em vista o cenário de sua mais velha já ter engravidado sem se casar, o que para época era um problema sério. Para mudar o destino das duas mais novas, ela optou por pedir às suas respectivas madrinhas para que elas pudessem ir morar com elas em Brasília, a jovem capital federal inaugurada no coração do Brasil. Como de costume no mundo campesino brasileiro, as madrinhas das filhas mais jovens de Dona Maria eram duas irmãs, que por sua vez eram filhas de um renomado casal da elite político-econômica formosense. O pai de Dona Maria, Seu Antônio, havia chegado em Formosa há algumas boas décadas antes junto ao pai de suas comadres, Seu Ribeiro. Contudo, o primeiro era pobre e o segundo tinha a herança que importava: o sobrenome Ribeiro –que por sinal era o mesmo de sua esposa, que era sua prima de primeiro grau e herdeira de uma vastidão de terras no cerrado goiano. Seu Ramiro, seus filhos e genros, como o pai de Val, trabalharam em diferentes momentos de vida para Seu Ribeiro. Por isso, ambas as famílias foram se
Quem pode (ou não) entrar no território brasileiro?
Durante minha vida acadêmica, estive preocupada em compreender os fluxos migratórios para o Brasil, dessa forma analisando os caminhos que são percorridos não apenas atualmente, mas também no que toca legislações e visões que, na teoria, não fazem mais parte de nossa vivência atual. Durante minhas pesquisas, e tendo como base a ideia que se tem de que o Brasil é um local acolhedor para migrantes, me perguntava: “para quais migrantes o Brasil pode ser considerado um país acolhedor?”. Refletindo sobre recortes de raça, as legislações migratórias brasileiras são baseadas políticas eugenistas, em pressupostos de superioridade branca e na formação de uma identidade nacional brasileira que tinha como fundamento a branquitude. Tendo essa questão como base para iniciar o debate, aciono o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, que proíbe a entrada de pessoas negras no Brasil, ao mesmo tempo que afirma ser inteiramente livre a entrada de pessoas no território, assim, sendo crime que essas pessoas entrem no Brasil. Assim, mais uma vez o questionamento é trazido quem é bem-vindo no Brasil? Ainda me referindo a políticas migratórias anteriores, analiso quem são as pessoas que são bem recebidas pelo governo brasileiro, sendo elas os europeus brancos, os quais era entendidos como “trabalhadores de bem”, “agricultores”, “pessoas que poderiam ajudar o Brasil a crescer. Por trás dessas afirmações e desses tipos ideais de migrantes, estavam os pressupostos raciais e os marcadores sociais da desigualdade que diferenciavam esse migrante de um migrante negro. Partindo para uma atualização de nossa lei migratória atual, a Lei nº 13.445/2017, conhecida popularmente como Lei de Migração de 2017, traz inovações gigantescas para o cenário migratório brasileiro, entendendo que todos podem migrar, sendo esse um direito humano, apoiado pela ONU. Porém, há uma diferença gigantesca entre teoria e prática, e a real forma que esses migrantes são recebidos no território brasileiro. Para melhor entender essa questão, irei abordar duas histórias de migrantes, os quais trarei nomes fictícios, que foram meus alunos em um projeto em que fui professora voluntária de português. O primeiro migrante é senegalês, se chamava Carlos, e vivia no Brasil tinha 4 anos, certo dia quando estávamos lanchando juntos, ele me contou que uma vez, no período em que ele ainda estava na fronteira brasileira, um dos policiais federais que ali estava para poder ajudar no apoio aos migrantes e refugiados daquela localidade, lhe disse a seguinte frase “olha macaco, ou você aprende a falar português direito ou não vai conseguir nada aqui no Brasil não, nem comida”. Isso porque Carlos não conseguia falar o que desejava comer naquele dia específico, pois não sabia pronunciar as palavras da forma considerada correta, nos padrões linguísticos nos quais estamos acostumados. Antes de refletir sobre essa primeira experiência, já narro a segunda situação, contada por meu aluno Henrique, um alemão branco, que havia se mudado para o Brasil fazia alguns meses na época, e tinha vindo para o país porque havia se apaixonado por uma brasileira e eles teriam um filho. Henrique me contava sobre como todos os brasileiros era solícitos com ele, como todos faziam o máximo para entender o que ele dizia e que, estando no Brasil ele “se sentia mais em casa do que na sua própria casa”. Esses dois casos específicos me fazem retomar o título da matéria “Quem pode (ou não) entrar no território brasileiro?”. Pois por mais que hoje nossa legislação migratória não seja como a do passado que expulsava legalmente pessoas negras do território nacional, essa repulsa é feita socialmente, não acolhendo esses sujeitos no Brasil, os entendendo como inferiores e não merecedores de estarem no país. Dessa forma, a partir dessas duas experiências completamente distintas conseguimos compreender que ainda há um tipo ideal de migrante, e ele ainda é o branco europeu, e que ainda se tem como justificativa que “essas pessoas são mais evoluídas economicamente”, “eles têm uma melhor formação”, “são pessoas que podem fazer o Brasil crescer”. Assim, pressupostos racistas são reafirmados e atualizados a cada geração, se baseando em ideários de crescimento econômico e negando os marcadores sociais da desigualdade que os regulam. Artigo por: Lara Noronha, mestranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), graduada em Antropologia (2021) e licenciada em Ciências Sociais (2020) pela Universidade de Brasília.em como interesse principal de pesquisa migração e acolhimento, com foco em projetos de ensino de português como língua de acolhimento para migrantes e refugiados. É pesquisadora no Laboratório de Migrações Internacionais (LAEMI/ELA/UnB) do Departamento de Estudos Latino Americanos, Laboratório etnografia das circulações e dinâmicas migratórias (MOBILE/DAN/UnB) e o Laboratório de Etnografias em contextos africanos (ECOA/DAN/UnB).
Equilíbrio econômico: O alivio que o programa ‘Desenrola’ oferece no combate ao endividamento da mulher brasileira
No dia 18 de Julho de 2023, o presidente da república Luis Inácio Lula da Silva começou a operar um programa de governo para ajudar os 70 milhões de brasileiros que estão endividados. O programa “Desenrola” contará com três fases: A primeira que abrange cerca de 1,5 milhões de pessoas físicas e que tiveram seu nome negativado por uma dívida de até R$100 contarão com a ajuda do governo para limpar o seu nome. A dívida permanecerá nos bancos, mas seu nome não estará inadimplente. A segunda fase contará com apoio dos bancos, as pessoas que tiveram dívidas com algum banco, poderão renegociar seus débitos com a própria instituição. Nessa fase o governo resolverá as dívidas de pessoas físicas até 31 de dezembro de 2022, e renda de até R$ 20 mil. Já a terceira fase, começará agora em setembro para as pessoas com renda fixa de até dois salários mínimos e com dívidas até R$5mil. Poderão ser renegociadas dívidas financeiras e não financeiras, feitas entre 1º de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022. Por que as mulheres são as mais endividadas no Brasil? Quais fatores influenciam? O perfil do endividado no Brasil é uma mulher solteira que não concluiu o EM e que tem cerca de 35 anos com renda familiar de até 10 salários mínimos. Com o cartão de crédito como principal fonte de endividamento, as mulheres são responsáveis por cerca de 50,8% dos lares brasileiros e recebem 22% a menos que os homens. O endividamento das mulheres em relação a cartões de crédito no Brasil é resultado de uma combinação complexa de fatores, incluindo desigualdade de gênero, equidade salarial, pressões sociais (estéticos ou não), machismo e falta de educação financeira. Além das desigualdades de gênero, existem desigualdades profundas entre diferentes grupos raciais no Brasil. As mulheres negras, por exemplo, enfrentam uma combinação de discriminação de gênero e racismo sistêmico, o que resulta em maiores barreiras para o acesso a empregos bem remunerados, educação de qualidade e oportunidades de crescimento econômico. Quer saber mais sobre o programa? Acesse: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/desenrola-brasil Artigo por: Bianka Ferreira, Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e graduanda em Marketing Digital com foco em democracia digital.