Observatório Racial

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“Se eu não tivesse estudado, eu seria mais uma Madalena”

O parentesco como atualizador da falsa abolição brasileira

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo traçar uma reflexão inicial sobre uma situação muito comum, mas pouco analisada com maior densidade na literatura das ciências sociais brasileiras: o caso de meninas-moças negras e pobres que têm a sua infância e juventude roubada para trabalhar na casa de padrinhos e madrinhas, estes frequentemente pertencentes às elites locais. Para isso, traço a história de vida de Val, que aos nove anos foi morar com a sua madrinha e, a partir dela, reflito sobre como essa estratégia de parentesco a partir do compadrio atua como uma atualização da dominação racial no período pós-abolição brasileiro.

Introdução

Quando criança, eu fui babá de filhinho de madame, você sabe que a criança negra começa a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse pra casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da casa. Eu reagi muito contra isso e então o pessoal terminou me trazendo de volta pra casa (GONZALEZ, 2020, p. 19).

Em  uma  noite  de  domingo  de  dezembro  de  2020,foi  transmitida  no  programa Fantástico,  da  Rede  Globo,  uma  reportagem  que  denunciava  o  caso  de  Madalena Gordiano, uma mulher negra de pele retinta de então 46 anos que desde os oito anos de idade  vivia  em  situação  análoga  à  escravidão  pela  tradicional  família  mineira  Milagres Rigueira. Madalena era privada de contato com pessoas que não viviam na casa, do acesso à saúde adequada, do salário que deveria ser pago a ela, de direitos trabalhistas e da pensão referente ao seu matrimônio com Marino Lopes, tio da esposa de Dalton César, que por sua vez é filho de Maria das Graças Milagres Rigueira, a quem Madalena foi deixada por sua  mãe  biológica,  que  possuía  muitos  filhos  e  não  tinha  condições  de  criá-los,  na promessa  de  que  Maria  das  Graças  adotasse  formalmente a  então  menina.  No seio da tradicional família, Madalena foi “herdada” de mãe para filho, como se ela fosse um bem que é  passado  de  uma pessoa à outra, sem direito a desejos, vida própria e à dignidade humana.

A algumas centenas de quilômetros dali, em uma cidade goiana no entorno do Distrito Federal,  Val  assistia  à  reportagem-denúncia  com  lágrimas  nos  olhos.  Ao ver  a história de Madalena ser narrada, percebeu que tinha um pouquinho da sua história na tela daquela televisão. Ela imediatamente pegou seu celular, mandou uma mensagem para seu filho mais novo e disse “se eu não tivesse estudado, eu seria mais uma Madalena”. Talvez aquele momento foi o gatilho para que ela repensasse toda a sua vida e seu lugar no mundo.

  Como o/a leitor/a já deve perceber, o presente relato etnográfico tem por objetivo apresentar a história de vida de Val, uma mulher negra, décima filha que sobreviveu para além do primeiro ano de vida de um casal camponês da zona rural de Formosa, cidade goiana que atualmente conta com um pouco mais do que 120 mil habitantes. A partir da vida de Val, que também conta a história de tantas outras meninas negras brasileiras que tiveram suas infâncias ocupadas por panelas, roupas para lavar e crianças para cuidar, viso discorrer sobre como o racismo brasileiro se atualiza a partir dos laços de parentesco, na casa e no cotidiano dessas mulheres negras, interseccionando marcadores de gênero, raça, classe e geração (COLLINS; BILGE, 2021; GONZÁLEZ, 2020).

    Longe de pretender trazer grandes respostas para essa questão que ao mesmo tempo é tão central na formação de algo que poderemos chamar de parentesco brasileiro e tão negligenciada  nos  tradicionais  circuitos  das  ciências  sociais  nacional,  trago  aqui olhares e propostas analíticas primeiras para uma questão que me persegue desde os meus primeiros dias de vida. Para isso, discorro em um primeiro momento sobre a história de vida da minha  interlocutora  principal  a  partir  de  situações  e  trechos  da  sua  trajetória contados a mim ao decorrer dos últimos anos e, na sequência, traço algumas reflexões que me surgiram a partir das suas palavras

A trajetória de Val

Em 1979, quando Val tinha apenas 9 anos, seu pai faleceu em decorrência de um acidente no trato do gado de sua roça. Sua mãe, Maria, mãe de dez filhos que sobreviveram à gestação e aos difíceis primeiros meses de vida, sentiu-se sozinha com a partida do seu companheiro de tantos anos e viu-se sem condições de criar com ela todas aquelas crianças e adolescentes, uma vez que ela era uma mulher analfabeta e que, para além do trabalho da roça, só via como alternativa o trabalho doméstico para outras famílias. Assim, mudou-se  para  a  casa  que  ela  e  seu  marido  haviam  construído  no  que  então  era  a  periferia  de Formosa, pois ali encontraria trabalho mais facilmente.

  Com os filhos homens1crescidos e quase todos já trabalhando, Dona Maria precisava lançar  mão  de  alguma  estratégia  para  fazer  com  que  as  suas  filhas  mais  moças prosperassem, tendo em vista o cenário de sua mais velha já ter engravidado sem se casar, o que para época era um problema sério. Para mudar o destino das duas mais novas, ela optou por pedir às suas respectivas madrinhas para que elas pudessem ir morar com elas em Brasília, a jovem capital federal inaugurada no coração do Brasil.

Como  de  costume no  mundo  campesino  brasileiro, as  madrinhas das  filhas  mais jovens de Dona Maria eram duas irmãs, que por sua vez eram filhas de um renomado casal da  elite  político-econômica  formosense.  O  pai  de  Dona  Maria,  Seu  Antônio,  havia chegado em Formosa há algumas boas décadas antes junto ao pai de suas comadres, Seu Ribeiro.  Contudo,  o  primeiro  era  pobre  e  o  segundo  tinha  a  herança  que  importava:  o sobrenome  Ribeiro –que  por  sinal  era  o  mesmo  de  sua  esposa,  que  era  sua  prima  de primeiro grau e herdeira de uma vastidão de terras no cerrado goiano.

Seu  Ramiro,  seus  filhos  e  genros,  como  o  pai  de  Val,  trabalharam  em  diferentes momentos de  vida para Seu Ribeiro. Por isso, ambas  as  famílias  foram se entrelaçando por meio de redes de compadrio baseadas em relações dadivosas. De um lado, a família terratenente oferecia proteção em tempos de escassez e empregos. Do outro lado, a família de Dona Maria oferecia a mão-de-obra, que enriqueceu ainda mais os Ribeiro. Assim, Val foi dada para ser batizada por Fátima, filha temporã do poderoso casal.

Quando a escassez deu sinais com a morte do seu companheiro, Dona Maria pediu que sua comadre levasse Val para morar com ela, seu marido e o casal de filhos em sua casa na capital federal. Assim, com a possibilidade de estudar, Val teria chances de virar gente,  ou  seja,  prosperar  na  vida,  ou  ainda  em  bom  antropologuês:  civilizar-se.  Assim, começou a trajetória que aqui relato daquela garota mirradinha que parecia ter menos do que  os  9  anos  que  ela  possuía na época chegou  a  um apartamento  localizado  no Plano Piloto, bairro nobre de Brasília. Laura, a filha da sua madrinha, mostrou o seu quarto à Val, que para a recém-chegada parecia ser o de uma princesa. Em contrapartida, Val foi apresentada  ao  seu  quarto,  um  quarto  de  empregada.  Ao  descer  para  a  parte  térrea  do prédio para conhecer os moradores da quadra da sua faixa etária, Val foi assim apresentada às crianças que ali estavam pelo filho mais velho da sua madrinha, Rodrigo: “olha só, essa aqui é a nossa nova empregada”.

Embora sua madrinha tenha repreendido o garoto, ela havia percebido qual seria o seu  lugar ali.  Quando  se  mudaram  para  o  apartamento  onde  a  família  viveria  por  mais tempo, poucos anos depois da chegada de Val, ela foi, mais uma vez, alojada no famoso DCE –dependência completa de empregada, como aponta Preta Rara (2020), a senzala moderna, uma reminiscência dos tempos de casa grande que não cessam. Esse cubículo ficava   na   área   de   serviço   da   residência,   com   uma   cama   de   solteiro   que   cabia milimetricamente no espaço do quarto, um pequeno armário e sem qualquer janela que possibilitasse a entrada de luz natural e a circulação de ar. O quarto era tão pequeno que era possível abrir os braços dentro dele e tocar as duas paredes. O banheiro ao seu lado, que  mais  tarde  teve  a  porta  vinculada  ao  quarto,  era  tão  estreito quanto  o  lavabo  do apartamento, sendo o único dos banheiros com chuveiro que não possuía um box.

Naquele quarto, onde Val viveu por quase 10 anos da sua vida, ela passou inúmeras madrugadas estudando, já que ela tinha que acordar cedo, deixar o almoço pré-pronto para terminá-lo quando chegasse da escola. E por gostar tanto de estudar, a impossibilidade de ir  para  a  escola  era  o  castigo  que  lhe  era  aplicado  ao  realizar  alguma  ação  que  era desaprovada  por  sua  madrinha.  Aos  filhos  do  casal,  isso  sequer  foi  uma  penalidade cogitada.  À  Val, cabia  a  responsabilidade  de  realizar  os  serviços  domésticos.  Aos  filhos dos Ribeiros, o tempo de estudos e lazer, tendo como único objetivo seguir com o legado da família, objetivo não muito difícil de conquistar em um país que parece viver até os dias de  hoje  sob  o  regime  das  capitanias  hereditárias  e  onde  opera  firme  e  forte  um  pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2002), que garante aos filhos das nossas brancas elites os lugares que eles acham que é deles por direito na estrutura social brasileira, apesar de muita mediocridade.

A   ela   cabiam   todas   as   culpas   pelas   coisas   que   estragavam   na   casa.   A responsabilização  a  ela  era  tamanha  que,  quando  o  patriarca  da  casa  comprou  um videogame recém-lançado para os jovens da casa se divertirem, ela disse, com a sua famosa resposta na ponta da língua, que preferia não aprender para não receber a culpa quando o eletrônico estragasse –o que ela sabia que uma hora ou outra ocorreria. A esses episódios ela credita a sua total aversão à tecnologia hoje em dia, que lhe trouxe dificuldades quando o início da pandemia da Covid-19 demandou alguma prática no uso de computadores e plataformas virtuais para dar aulas.

Quando Val chegou ao segundo grau, atual ensino médio, a família Ribeiro entrou em um dilema: as aulas das escolas públicas ocorriam em tempo integral, uma vez que os jovens  já  saíam  com  cursos  técnicos  como  o  Magistério,  o  que  faria  com  que  Val  se ausentasse  por  muito  tempo  da  casa,  gerando  um  desfalque  no  serviço  doméstico  e  a demanda  por  uma  empregada  doméstica  remunerada.  Assim,  a  solução  encontrada  foi matricular  a  jovem  em  uma  escola  particular  católica,  que  também  oferecia  o  curso  de Magistério integrado ao segundo grau, o que seria menos dispendioso –e mais “seguro” –do que contratar uma funcionária para cuidar da casa.

Como era de se esperar, essa decisão não aconteceu sem abjeções. Perpétua, irmã mais  velha  do  marido  da  sua  madrinha,  disse,  consternada  com  a  situação,  que  era  um absurdo  que  Val,  a  empregada  da  casa,  estivesse  estudando  em  uma  escola  particular enquanto  o  primogênito  e  herdeiro  do  sobrenome  da  família  frequentava  uma  escola pública (após ser reprovado várias vezes seguidas no primeiro ano do segundo grau). Foi preciso mostrar o boletim impecável de Val para que Perpétua se calasse (sobre o assunto).

Todavia,  o  caminho  de  Val  não  foi  o  mesmo  trilhado  por  sua  irmã  Marta,  com quem ela possui a maior proximidade dentre as suas irmãs. Após o falecimento do seu pai, Marta também foi morar com a sua madrinha em Brasília, que não coincidentemente era irmã da madrinha de Val. Por diversas razões, Marta decidiu por regressar para Formosa antes de terminar o segundo grau, o que limitou as suas chances de conseguir empregos com maior remuneração. Assim, Val foi (e ainda é) a única dos dez filhos de Dona Maria que conseguiu concluir o ensino básico.

É com Marta com quem Val tem uma das memórias mais cruéis da sua juventude entre os Ribeiro. Em uma das reuniões desta família, correu o rumor entre as crianças de que os filhos de um dos irmãos da sua madrinha seriam adotados, o que aconteceu porque a  mãe  biológica  de  um  deles  estaria  na  casa  onde  todos  estavam  reunidos.  Então,  a criançada se reuniu e encheu aquele que havia sido adotado das mais diferentes perguntas. Ao descobrirem, os adultos direcionaram a bronca unicamente à Val e à Marta, dizendo: “eles são adotados, mas serão os nossos herdeiros. Enquanto isso vocês serão para sempre simples empregadinhas”, reiterando o lugar que elas ocupavam no mundo pelo ponto de vista dos Ribeiro.

Em sua narrativa, essa situação parece ter sido uma grande motivadora para que Val não  deixasse  nunca  de  estudar.  Após  se  formar  no  Magistério,  Val  prestou  o  concurso para ser professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal e logo foi aprovada. Sua aprovação coincidiu com o seu casamento, que fez com que ela regressasse para Formosa. Entretanto, sua relação com os Ribeiro não se desfez aí. Um dos seus filhos foi batizado pelos  filhos  de  sua  madrinha  e,  em  uma  situação  um  tanto  quanto  inusitada  para  esse padrão de sociabilidade, o inverso também ocorreu.

As relações entre eles continuaram se entrelaçando a partir dos apadrinhamentos mútuos de casamentos, especialmente entre Val e Laura, a filha da sua madrinha, e com quem a relação seguiu muito próxima ao decorrer dos anos. Ao narrar suas memórias, Val vê  com  afeto  a  conexão  que  ambas  desenvolveram,  tendo  a  primeira  desenvolvido  um papel de proteção frente à segunda, especialmente em relação às brigas que Laura e seu irmão travavam na época em que Val morava com eles. Também, Val aponta que sempre que  precisou,  Laura  estava  pronta  para  ajudar,  como  quando  ela precisou custear  as mensalidades da sua faculdade, demandada pela Secretaria de Educação como condição para que  continuasse como docente. O contrário também foi/é uma realidade, estando Val sempre disposta  a  ajudar  Laura.  Há  quem  diga  que  as  duas  são  mais  irmãs  do  que Laura e Rodrigo, tamanha a proximidade que elas construíram.

Ao decorrer das suas pouco mais do que 5 décadas de vida, Val teve dois filhos, casou-se, separou-se, reaprendeu a ser amada por um novo companheiro, tornou-se uma das professoras mais queridas (e competentes) da escola onde ela trabalhou por quase 3 décadas  alfabetizando gerações  de  crianças e, após quarenta anos de  trabalho contínuo, conquistou a sua aposentadoria –um dia de emoção para todos. E é a educação –que foi o motor para transformação da sua vida e que possibilitou que ela não estivesse até hoje vivendo  em  condições  de  trabalho  doméstico  análogo  à  escravidão,  como  aponta  a reflexão  feita  por  ela  que  intitula  esse  trabalho –que  ela  compreende  como  a  mais importante herança que pode deixar para os seus filhos, uma vez que o diploma é a única coisa a qual ninguém tiraria deles. O diploma,ao fim e ao cabo, é visto como um valor moral, uma vez que a educação é vista por Val como um meio de ascensão social, o que o trabalho por si só não garantiria.

Foi através da educação que ela encontrou uma das maiores surpresas da sua vida. Um dia, ao refletir sobre as transformações que a pandemia da Covid-19 impôs às vidas de todos, disse: “a vida é mesmo cheia dos inesperáveis. Quando eu ia imaginar que eu teria um filho fazendo doutorado?”. O mais curioso de tudo é que apenas um dos muitos descendentes dos Ribeiro também conseguiu tal feito. E, enquanto aquela que seria apenas uma  empregadinha  conquistou  um  emprego  estável  que  lhe  garantiu  a  aposentadoria  e algum descanso após tantos anos de  trabalho –muitos deles não remunerados –, parte dos herdeiros seguem sendo unicamente o que esse título nos diz: pessoas que aguardam a morte dos seus pais para, enfim, colocarem as mãos na herança –embora alguns deles já tenham acabado com parte substancial da herança da família ainda com seus pais vivos.

Não quero, aqui, fazer uma ode à meritocracia e dizer que Val conquistou tudo que teve  às  custas  de  muito  trabalho  duro.  Val,  a  personagem  central  dessa  narrativa,  é  a exceção  da  exceção  à  regra  na  realidade  brasileira,  que  encontra  na  intersecção  entre gênero e raça uma máquina de moer gente e sonhos. Como já apontado, ela é a única dos dez filhos de Dona Maria que conseguiu concluir o ensino básico e, mais do que isso, a única que concluiu o ensino superior em um período no qual ela saía cedo de casa para trabalhar, chegava no final da tarde com um curto tempo para tomar um banho, alimentar-se e rapidamente correr para a faculdade, vendo seus filhos com mais vagar aos finais de semana.  Felizmente  uma  boa  parcela  dos  seus  sobrinhos,  assim  como  seus  filhos, conseguiu cursar o ensino superior, mas esta ainda não é a realidade de todos.

Mesmo que Val tenha transformado a sua própria realidade social e a de seus filhos através dos estudos, isso não impede que até hoje Rodrigo, o filho da sua madrinha, sinta-se à vontade para falar com ela no imperativo, achando que a mesma está lá para servi-lo. Toda essa situação só reflete que a noção do “como se fosse da família” ou “ela é a minha filha preta”, como Val já ouviu da sua madrinha, está fortemente encrustada nas relações ali tecidas. Mas, para melhor desenvolver esse raciocínio, passemos para o próximo tópico

O compadrio rural como reminiscência da escravidão

A literatura das ciências sociais aponta que as práticas de fostering –ou circulação de crianças –(LOBO, 2013) e de eufemização da exploração laboral doméstica precariamente remunerada  por  meio  da  ideia  do  “como  se  fosse  da  família”  (COLLINS,  2007; MOGUÉROU et  al,  2018;  SILVEIRA,  2011)  não  são  questões  exclusivas  do  contexto brasileiro. Contudo, no caso aqui descrito, é interessante direcionar o olhar para a forma como esses dois fenômenos acabam por se entrecruzar em um momento muito específico da  história  político-social  brasileira:  o  pós-abolição.  É  de  amplo  conhecimento  que  as sucessivas leis criadas ao decorrer do século XIX para cercear as práticas formais e legais de escravidão negro-africana não garantiram, após o fim desta, uma reparação econômica nem possibilidades de integração social aos ex-escravizados e seus descendentes.

Muito  pelo  contrário,  foi  visto  um  intenso  processo  de  discussão  de  práticas eugênicas e promulgação de leis higienistas que mitigaram ainda mais as possibilidades de existência da população negra brasileira, entrando em curso uma nova faceta das práticas que Abdias do Nascimento (1978) denominou de genocídio do negro brasileiro. Em um contexto necropolítico no qual essa população foi (e continua) largada à própria sorte pelo Estado brasileiro para padecer em situação de precariedade, vimos, no contexto rural, uma divisão  social  do  trabalho  com  base  no  gênero  ser  reproduzida,  na  qual  os  homens trabalhavam na agricultura e as mulheres no serviço domésticos, ambos para as mesmas famílias terratenentes, que seguiram vendo as populações negras que para elas trabalhavam pela  lógica  escravocrata.  Isso  ocorre  porque,  como  aponta  Silvio  de  Almeida  (2019),  o racismo  é  a  lógica  pela  qual  as  relações  na  sociedade  brasileira  estão  estruturadas  e  é  apartir da raça que o lugar das pessoas no mundo será definido.

Nisso,  era  preferível  para  algumas  dessas  pessoas  a  submissão  a  condições  de trabalho  análogas  à  escravidão  do  que  viver  à  própria  sorte  em  um  mundo  no  qual  o racismo antinegro gera pouquíssimas condições de vida para elas. Assim, no pós-abolição, vemos a intensificação de uma prática que moldaria a nova faceta da dominação racial em solo brasileiro: se antes brancos detinham o poder sobre os negros porque os últimos eram considerados  objetos  de  pertença  dos  primeiros,  essa  relação  se  atualiza  e  a  hierarquia entre ambos se mantém a partir dos laços de compadrio.

No caso de Val, gerações das duas famílias se interligaram por meio do compadrio. O  compadrio  era  uma  forma  de  as  famílias  pobres  garantirem  proteção  de  um  grande senhor de terras, assim como emprego, e por parte dos poderosos este atuava como um arregimentador de gente. Levando em consideração que o econômico e o político muitas vezes  se  mesclavam,  como  era  o  caso  do  patriarca  dos  Ribeiro,  ter  muita  gente  à  sua disposição  era  também  uma  forma  de  garantir  a  fidelidade  política  em  tempos  de coronelismo.

Fazer do parentesco o elo que une esses dois grupos sociais tão distintos passa a ser, então, a tática perfeita para suavizar, no âmbito do discurso, a violência que perpassa as  relações  que  estão  em  jogo.  E,  logicamente,  não  é  o  parentesco por  excelência.  No Brasil, essas famílias herdeiras prezam pela “pureza racial” e são altamente endogâmicas. Não à toa o patriarca e a matriarca dos Ribeiro eram primos de primeiro grau. Como bem postula Schneider (2016, p. 34-5, 40-1) em sua obra acerca do sistema de parentesco das classes médias brancas estadunidenses, o modelo de parentesco euro-estadunidense (do qual  somos  herdeiros)  preza  muito  pelas  relações  sanguíneas,  decidindo  quem  são  os parentes pela ordem do sangue e aqueles que são por ordem da lei.

Aqui,  em  uma  sociedade  altamente  católica,  temos  também  aqueles  que  são parentes por ordem divina (e ritual!), ou seja, pelo batismo. Isso porque, dentro das formas

de organização social, o parentesco é uma daquelas que “permite às pessoas viverem juntas e cooperarem umas com as outras segundo certa ordem social” (RADCLIFFE-BROWN, 1982, p. 13), não sem tensões, controle e prática de dominação pautadas em algum modelo de hierarquia, neste caso a racial. E o que há de mais potente para a docilização dos corpos em  nossa  sociedade  do  que  as  relações  de  parentesco?  Aqui,  a  laços  de  parentesco construídos através de laços rituais (o batismo), que geram laços de compadrio, acabam intensificando  relações  de  obrigação  e  dominação  baseadas  na  raça. É  a  sofisticação  da atualização  do  racismo  na  sociedade  brasileira  e  as  formas  como  ele  encontra  de  se mascarar –o que não faz dele menos violento.

Embora estes sejam vinculados eternamente pelos laços de Deus, eles formam uma relação de parentesco um tanto quanto mais frágil, visto que a relação não foi sacralizada pelo sangue e nem pela legislação, o que não garante os direitos (e os deveres) que aqueles parentes  assim legitimados possuem pelos olhos  da sociedade. Desta forma, permite-se intensificar a hierarquia entre eles através da adjetivação das relações. As afilhadas, como Val,  que  vão  morar  com  as  suas  madrinhas  na  promessa  de  que  na  cidade  grande  elas poderão estudar –promessa essa raramente cumprida –são quase da família. Podem até ser consideradas como filhas de alguma forma, mas são filhas pretas, ou seja, filhas, mas de uma categoria muito inferior se comparado com os legítimos herdeiros.

Vale  retomar  que  o parentesco  é,  sobretudo,  uma  relação  dadivosa  estabelecida entre desiguais e que, neste caso, atua para legitimar as formas de dominação racial a partir das quais a estrutura do prédio que se chama sociedade brasileira teve sua base construída. Por isso, se a sociabilidade das  grandes  e  pequenas  cidades  brasileiras  está ancorada no “você sabe com quem você está falando?”, que na análise de Roberto DaMatta (1986) mostra a emergência da hierarquia no cotidiano que o suposto homem cordial brasileiro não teria, proponho perceber como as relações de parentesco fundadas nesses vínculos dadivosos  desiguais  baseados  no  compadrio  estão  condicionadas  a  um  outro  ato elucubrativo , o do “você vai fazer tal coisa depois de tudo que ele/a fez por você?”.

Essas relações são construídas pela eterna dívida que afilhadas teriam com as suas madrinhas e padrinhos, que lhe deram casa, comida e, quando muito, educação. Por outro lado, todo o trabalho doméstico não-remunerado despendido por meninas e moças como Val são lidos, no seio dessa relação de parentesco, pela via do amor e da gratidão por tudo que elas “receberam” e a quem elas devem ser gratas por tudo que elas conquistaram. Isso porque,  sendo  o  parentesco  construído  a  partir  de  uma  terminologia  que  requer  um conjunto de ações, comportamentos e atitudes especificas de um parente para o outro, e a gratidão passam a ser marca da postura que a afilhada deve assumir frente à sua madrinha/padrinho.

No entanto, vale trazer a célebre frase dita por Silvia Federici ao pensar a exploração patriarcal em cima do trabalho doméstico desempenhado por mulheres “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”.2Todavia, todo esse  trabalho, que  entendo  aqui  como  um  trabalho  análogo  à  escravidão,  não  é  visto pela  sociedade brasileira que está afundada até hoje na lógica da demagogia, digo, democracia racial, como trabalho.  Dentro  da  nossa  estrutura  familiar,  o  trabalho  realizado no  âmbito do  grupo doméstico e em prol do mesmo é eufemizado como cuidado, amor, entre outras lógicas marcadas pelo sentimento, o que, na ótica das imagens de controle elaboradas por Lélia Gonzalez  (2020),  mantém  a  mulher  negra  como  esse  ser  sem  individualidade,  mas ocupando o eterno lugar de mãe-preta dos filhos da casa grande.

Por essa razão, se o modelo de parentesco baseado no compadrio que aqui analiso é  fortemente  fundado  no  biológico  para  manter  a  hierarquização  entre  os  dois  grupos, terratenentes  e  peões/empregadas,  acho  que  pensar  essa  família  brasileira  herdeira  das elites agrárias pela via da família nuclear patriarcal, como propõe Schneider (2016), é tentar encaixar  cubo  em  cilindro.  Enquanto  nas  famílias  observadas  por  Schneider  há  uma reprodução  da  dominação  masculina,  na  qual  a  mulher/esposa  gere  as  atividades domésticas, no  cenário  aqui  analisado  é  necessária uma figura  exógena a essa realidade, pois  mesmo  quando  a  matriarca  das  famílias  terratenentes  é  responsável  por  gerir  o cotidiano  do  mundo  do  doméstico,  é preciso a  figura  de  uma  (ou  mais)  mulher(es) negra(s), que vai(vão) ser tratada(s) como se fosse(m) da família, que fará(am) todo o trabalho –e que dificilmente receberá(am) os créditos por ele.

Aqui, acredito que é muito mais interessante pensar essas formas de construção do parentesco pela via dos grupos domésticos, proposta produzida por Meyer Fortes (1974) que nos ajuda a pensar essas relações de forma processual, assim como o parentesco para além daqueles que formam o núcleo da família, incluindo escravizados e demais pessoas que  vivam  na  propriedade  da  família.

 Pensar  essa  forma  de  parentesco  originária  das relações de compadrio, que por sua vez estão fundadas nas reminiscências da escravidão brasileira, faz com que percebamos que, ao fim e ao cabo, meninas e moças como Val são vistas como propriedade dessas famílias, que podem ser “levadas”, “emprestadas” ou “herdadas” por parentes e amigos, como o próprio caso de Madalena, que abre este trabalho. Não à toa o lugar de Val quando ocorriam as reuniões familiares dos Ribeiro era (ou ainda é?) sempre na cozinha, sendo o seu trabalho “emprestado” para os anfitriões. Pensar essas relações por via do grupo doméstico nos possibilita visualizar que não apenas meninas como Val, mas também suas mães, irmãs, pais e irmãos tiveram suas vidas marcadas por trabalharem de forma não ou pouco remunerada para famílias como a dos Ribeiro em nome desses laços de compadrio. Por essa razão, proponho que a ideia de como se fosse da família, lugar limiar que essas meninas, moças e mulheres negras sempre ocupam na  estrutura  familiar  das  elites  brancas,  não  reflete  apenas  um  mero  eufemismo.  Essa expressão  atua  justamente  para  tornar  nebulosa  a  relação  que  se  estabelece  a  partir  do compadrio,  que  forma  um  parentesco  mais  frágil  do  que  aquele  desenvolvido  pela descendência e pela aliança, assim como para matizar as violências intrínsecas a ela.

A  ideia  do como  se  fosse  da  família emerge  também  na  obra  de  Patricia  Hill  Collins (2007),  que  ao  analisar  a  história  de  Mildred,  empregada  doméstica  afro-estadunidense apresentada na obra “Like One of the Family”, percebe que

o qualificador ‘como’ é essencial aqui, pois sinaliza o poder da Sra. C. [patroa de Mildred]  de  definir  o  que  significa  família  e  posicionar  Mildred  dentro  de  sua concepção de família normal. Desde que Mildred conheça seu lugar na família como uma trabalhadora subordinada, ela pode ficar. (COLLINS, 2007, p. 29).

No  caso  aqui  analisado,  o como  se  fosse  da  família é  uma  das  ferramentas  que viabilizaram  a  atualização  do  racismo  brasileiro  no  pós-abolição.  Se  antes  disso  as mulheres escravizadas que trabalhavam nas casas grandes eram parte das famílias brancas por serem propriedade delas, agora as descendentes dessas mulheres tornam-se quase da família por meio dessa ambígua, assimétrica e  hierárquica relação de parentesco  que  é o compadrio  entre  terratenentes  e  seus  empregados.  Isso  porque,  como  aponta  Carsten (2014,  p.  106,  115),  o  parentesco  é  também  marcado  por  violações  de  promessas  e intimidades,  atos  de  violência  física e  simbólica,  se  dissolve  e  reconfigura  a  partir  dos desejos  dos  envolvidos.  O  parentesco  é  interdependência  e  necessidade.  E  pensar  na importância  da  temporalidade  do  parentesco  proposta  por  Carsten  é,  ainda,  entender como  as  estruturas  de  dominação  também se  atualizam  a  partir  dele –no  caso  aqui analisado, aquela que intersecciona gênero e raça.

Na  atualização  do  racismo,  as  senzalas  também  são  atualizadas  em  cidades modernas como Brasília por meio dos quartinhos de empregada, os quartos de despejo,

onde as indesejáveis são escondidas dos olhos da família de comercial de margarina. Que muitas  vezes,  como  foi  o  caso  de  Madalena,  tira  essas  mulheres  do  convívio  de  suas famílias e a possibilidade de formar a própria. Que controla a vida sexual delas, mas que não  as  protege  de  situações de  assédio  dentre  a  parentela  dos donos  da casa.  Mulheres como  Val  são  vistas como  se  fossem  da  família nessa  atualização  do  racismo  brasileiro  não porque o colonialismo português que imperou no Brasil foi mais brando que os demais. Muito  pelo  contrário!3Devido  à  escassez  de  mão-de-obra  para  realizar  trabalhos  tão precários, precisou lançar mão de  ferramentas  de  dominação  como  essa para garantir a sua continuidade no Brasil republicano.

No fim das contas, o mais curioso é que se essas mesmas elites político-econômicas brasileiras seguem legitimando as suas ações “em nome da família brasileira” e contra a sua destruição pelos “inimigos internos”, como apontam Lobo e Cardoso (2021), essas mesmas elites não se constrangem em tirar a infância –que elas dizem tanto defender –de meninas negras, que trabalharam de forma análoga à escravidão na cozinha das suas casas. Eles parecem se esquecer que essa dita “família brasileira”, composta por papai, mamãe  e  seus  filhos,  só  atinge  o seu “sucesso” graças ao trabalho não-remunerado  de várias meninas negras ao redor do nosso país, que ao serem esquecidas na historiografia nacional em seus quartinhos de empregada, sentem na pele os efeitos do “tempo do cativeiro”, que parece distante, mas  que  ainda  se  reproduz  nas  relações  aqui  descritas (BRANDÃO, 1977). Da falsa abolição, que parece nunca chegar para elas.

Todavia, felizmente os tempos estão mudando. Acredito que nós, pessoas negras ingressantes  nas  universidades  ao  decorrer dos  últimos anos,  especialmente a partir  das políticas de cotas para negros, firmamos um compromisso coletivo em dizer que “nada será como antes, hoje mesmo” (VENANCIO; LIMA E SILVA, 2021, p. 12). Decidimos contar as histórias por um outro ponto de vista, sem ser aquele que vê o mundo sentado nas varadas das casas grandes. Por meio deste compromisso, jovens advogadas negras vêm denunciando  as  violações  nos  direitos  de  empregadas  domésticas  e  a  continuidade  das práticas escravocratas no desempenhar deste trabalho (ALVES, 2017; LOPES, 2020). E é a partir de movimentos como esses que a história de Val pode ser contada aqui por seu filho, Vinícius, que será o primeiro doutor dentre os netos de Dona Maria, à despeito de tudo aqui narrado. E assim, seguir o ensinamento de Conceição Evaristo: nossa história não  foi  escrita  para  ninar  os  da  Casa  Grande  e  sim  para  acordá-los  de  seus  sonhos injustos”.

Vinícius Venancio, Universidade de Brasília

Professor voluntário na Universidade de Brasília. Doutorando e Mestre (2020) em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Integra os Grupos de Pesquisa de Etnologia em Contextos Africanos e de Etnografia das Circulações e Dinâmicas Migratórias e o Comitê de Estudos Africanos da ABA. Atualmente realiza pesquisa sobre circulações e trajetórias de mulheres oeste africanas em Cabo Verde, país onde/sobre o qual realiza pesquisas desde 2016.

Texto publicado em: Equatorial “Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social” e autorizado pelo autor.

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DOCUMENTÁRIO LEGADO: ATIVISMO NEGRO DE BRASÍLIA
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01 de Novembro de 2024 às 14:00

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