O parentesco como atualizador da falsa abolição brasileira
Resumo
O presente trabalho tem por objetivo traçar uma reflexão inicial sobre uma situação muito comum, mas pouco analisada com maior densidade na literatura das ciências sociais brasileiras: o caso de meninas-moças negras e pobres que têm a sua infância e juventude roubada para trabalhar na casa de padrinhos e madrinhas, estes frequentemente pertencentes às elites locais. Para isso, traço a história de vida de Val, que aos nove anos foi morar com a sua madrinha e, a partir dela, reflito sobre como essa estratégia de parentesco a partir do compadrio atua como uma atualização da dominação racial no período pós-abolição brasileiro.
Introdução
Quando criança, eu fui babá de filhinho de madame, você sabe que a criança negra começa a trabalhar muito cedo. Teve um diretor do Flamengo que queria que eu fosse pra casa dele ser uma empregadinha, daquelas que viram cria da casa. Eu reagi muito contra isso e então o pessoal terminou me trazendo de volta pra casa (GONZALEZ, 2020, p. 19).
Em uma noite de domingo de dezembro de 2020,foi transmitida no programa Fantástico, da Rede Globo, uma reportagem que denunciava o caso de Madalena Gordiano, uma mulher negra de pele retinta de então 46 anos que desde os oito anos de idade vivia em situação análoga à escravidão pela tradicional família mineira Milagres Rigueira. Madalena era privada de contato com pessoas que não viviam na casa, do acesso à saúde adequada, do salário que deveria ser pago a ela, de direitos trabalhistas e da pensão referente ao seu matrimônio com Marino Lopes, tio da esposa de Dalton César, que por sua vez é filho de Maria das Graças Milagres Rigueira, a quem Madalena foi deixada por sua mãe biológica, que possuía muitos filhos e não tinha condições de criá-los, na promessa de que Maria das Graças adotasse formalmente a então menina. No seio da tradicional família, Madalena foi “herdada” de mãe para filho, como se ela fosse um bem que é passado de uma pessoa à outra, sem direito a desejos, vida própria e à dignidade humana.
A algumas centenas de quilômetros dali, em uma cidade goiana no entorno do Distrito Federal, Val assistia à reportagem-denúncia com lágrimas nos olhos. Ao ver a história de Madalena ser narrada, percebeu que tinha um pouquinho da sua história na tela daquela televisão. Ela imediatamente pegou seu celular, mandou uma mensagem para seu filho mais novo e disse “se eu não tivesse estudado, eu seria mais uma Madalena”. Talvez aquele momento foi o gatilho para que ela repensasse toda a sua vida e seu lugar no mundo.
Como o/a leitor/a já deve perceber, o presente relato etnográfico tem por objetivo apresentar a história de vida de Val, uma mulher negra, décima filha que sobreviveu para além do primeiro ano de vida de um casal camponês da zona rural de Formosa, cidade goiana que atualmente conta com um pouco mais do que 120 mil habitantes. A partir da vida de Val, que também conta a história de tantas outras meninas negras brasileiras que tiveram suas infâncias ocupadas por panelas, roupas para lavar e crianças para cuidar, viso discorrer sobre como o racismo brasileiro se atualiza a partir dos laços de parentesco, na casa e no cotidiano dessas mulheres negras, interseccionando marcadores de gênero, raça, classe e geração (COLLINS; BILGE, 2021; GONZÁLEZ, 2020).
Longe de pretender trazer grandes respostas para essa questão que ao mesmo tempo é tão central na formação de algo que poderemos chamar de parentesco brasileiro e tão negligenciada nos tradicionais circuitos das ciências sociais nacional, trago aqui olhares e propostas analíticas primeiras para uma questão que me persegue desde os meus primeiros dias de vida. Para isso, discorro em um primeiro momento sobre a história de vida da minha interlocutora principal a partir de situações e trechos da sua trajetória contados a mim ao decorrer dos últimos anos e, na sequência, traço algumas reflexões que me surgiram a partir das suas palavras
A trajetória de Val
Em 1979, quando Val tinha apenas 9 anos, seu pai faleceu em decorrência de um acidente no trato do gado de sua roça. Sua mãe, Maria, mãe de dez filhos que sobreviveram à gestação e aos difíceis primeiros meses de vida, sentiu-se sozinha com a partida do seu companheiro de tantos anos e viu-se sem condições de criar com ela todas aquelas crianças e adolescentes, uma vez que ela era uma mulher analfabeta e que, para além do trabalho da roça, só via como alternativa o trabalho doméstico para outras famílias. Assim, mudou-se para a casa que ela e seu marido haviam construído no que então era a periferia de Formosa, pois ali encontraria trabalho mais facilmente.
Com os filhos homens1crescidos e quase todos já trabalhando, Dona Maria precisava lançar mão de alguma estratégia para fazer com que as suas filhas mais moças prosperassem, tendo em vista o cenário de sua mais velha já ter engravidado sem se casar, o que para época era um problema sério. Para mudar o destino das duas mais novas, ela optou por pedir às suas respectivas madrinhas para que elas pudessem ir morar com elas em Brasília, a jovem capital federal inaugurada no coração do Brasil.
Como de costume no mundo campesino brasileiro, as madrinhas das filhas mais jovens de Dona Maria eram duas irmãs, que por sua vez eram filhas de um renomado casal da elite político-econômica formosense. O pai de Dona Maria, Seu Antônio, havia chegado em Formosa há algumas boas décadas antes junto ao pai de suas comadres, Seu Ribeiro. Contudo, o primeiro era pobre e o segundo tinha a herança que importava: o sobrenome Ribeiro –que por sinal era o mesmo de sua esposa, que era sua prima de primeiro grau e herdeira de uma vastidão de terras no cerrado goiano.
Seu Ramiro, seus filhos e genros, como o pai de Val, trabalharam em diferentes momentos de vida para Seu Ribeiro. Por isso, ambas as famílias foram se entrelaçando por meio de redes de compadrio baseadas em relações dadivosas. De um lado, a família terratenente oferecia proteção em tempos de escassez e empregos. Do outro lado, a família de Dona Maria oferecia a mão-de-obra, que enriqueceu ainda mais os Ribeiro. Assim, Val foi dada para ser batizada por Fátima, filha temporã do poderoso casal.
Quando a escassez deu sinais com a morte do seu companheiro, Dona Maria pediu que sua comadre levasse Val para morar com ela, seu marido e o casal de filhos em sua casa na capital federal. Assim, com a possibilidade de estudar, Val teria chances de virar gente, ou seja, prosperar na vida, ou ainda em bom antropologuês: civilizar-se. Assim, começou a trajetória que aqui relato daquela garota mirradinha que parecia ter menos do que os 9 anos que ela possuía na época chegou a um apartamento localizado no Plano Piloto, bairro nobre de Brasília. Laura, a filha da sua madrinha, mostrou o seu quarto à Val, que para a recém-chegada parecia ser o de uma princesa. Em contrapartida, Val foi apresentada ao seu quarto, um quarto de empregada. Ao descer para a parte térrea do prédio para conhecer os moradores da quadra da sua faixa etária, Val foi assim apresentada às crianças que ali estavam pelo filho mais velho da sua madrinha, Rodrigo: “olha só, essa aqui é a nossa nova empregada”.
Embora sua madrinha tenha repreendido o garoto, ela havia percebido qual seria o seu lugar ali. Quando se mudaram para o apartamento onde a família viveria por mais tempo, poucos anos depois da chegada de Val, ela foi, mais uma vez, alojada no famoso DCE –dependência completa de empregada, como aponta Preta Rara (2020), a senzala moderna, uma reminiscência dos tempos de casa grande que não cessam. Esse cubículo ficava na área de serviço da residência, com uma cama de solteiro que cabia milimetricamente no espaço do quarto, um pequeno armário e sem qualquer janela que possibilitasse a entrada de luz natural e a circulação de ar. O quarto era tão pequeno que era possível abrir os braços dentro dele e tocar as duas paredes. O banheiro ao seu lado, que mais tarde teve a porta vinculada ao quarto, era tão estreito quanto o lavabo do apartamento, sendo o único dos banheiros com chuveiro que não possuía um box.
Naquele quarto, onde Val viveu por quase 10 anos da sua vida, ela passou inúmeras madrugadas estudando, já que ela tinha que acordar cedo, deixar o almoço pré-pronto para terminá-lo quando chegasse da escola. E por gostar tanto de estudar, a impossibilidade de ir para a escola era o castigo que lhe era aplicado ao realizar alguma ação que era desaprovada por sua madrinha. Aos filhos do casal, isso sequer foi uma penalidade cogitada. À Val, cabia a responsabilidade de realizar os serviços domésticos. Aos filhos dos Ribeiros, o tempo de estudos e lazer, tendo como único objetivo seguir com o legado da família, objetivo não muito difícil de conquistar em um país que parece viver até os dias de hoje sob o regime das capitanias hereditárias e onde opera firme e forte um pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2002), que garante aos filhos das nossas brancas elites os lugares que eles acham que é deles por direito na estrutura social brasileira, apesar de muita mediocridade.
A ela cabiam todas as culpas pelas coisas que estragavam na casa. A responsabilização a ela era tamanha que, quando o patriarca da casa comprou um videogame recém-lançado para os jovens da casa se divertirem, ela disse, com a sua famosa resposta na ponta da língua, que preferia não aprender para não receber a culpa quando o eletrônico estragasse –o que ela sabia que uma hora ou outra ocorreria. A esses episódios ela credita a sua total aversão à tecnologia hoje em dia, que lhe trouxe dificuldades quando o início da pandemia da Covid-19 demandou alguma prática no uso de computadores e plataformas virtuais para dar aulas.
Quando Val chegou ao segundo grau, atual ensino médio, a família Ribeiro entrou em um dilema: as aulas das escolas públicas ocorriam em tempo integral, uma vez que os jovens já saíam com cursos técnicos como o Magistério, o que faria com que Val se ausentasse por muito tempo da casa, gerando um desfalque no serviço doméstico e a demanda por uma empregada doméstica remunerada. Assim, a solução encontrada foi matricular a jovem em uma escola particular católica, que também oferecia o curso de Magistério integrado ao segundo grau, o que seria menos dispendioso –e mais “seguro” –do que contratar uma funcionária para cuidar da casa.
Como era de se esperar, essa decisão não aconteceu sem abjeções. Perpétua, irmã mais velha do marido da sua madrinha, disse, consternada com a situação, que era um absurdo que Val, a empregada da casa, estivesse estudando em uma escola particular enquanto o primogênito e herdeiro do sobrenome da família frequentava uma escola pública (após ser reprovado várias vezes seguidas no primeiro ano do segundo grau). Foi preciso mostrar o boletim impecável de Val para que Perpétua se calasse (sobre o assunto).
Todavia, o caminho de Val não foi o mesmo trilhado por sua irmã Marta, com quem ela possui a maior proximidade dentre as suas irmãs. Após o falecimento do seu pai, Marta também foi morar com a sua madrinha em Brasília, que não coincidentemente era irmã da madrinha de Val. Por diversas razões, Marta decidiu por regressar para Formosa antes de terminar o segundo grau, o que limitou as suas chances de conseguir empregos com maior remuneração. Assim, Val foi (e ainda é) a única dos dez filhos de Dona Maria que conseguiu concluir o ensino básico.
É com Marta com quem Val tem uma das memórias mais cruéis da sua juventude entre os Ribeiro. Em uma das reuniões desta família, correu o rumor entre as crianças de que os filhos de um dos irmãos da sua madrinha seriam adotados, o que aconteceu porque a mãe biológica de um deles estaria na casa onde todos estavam reunidos. Então, a criançada se reuniu e encheu aquele que havia sido adotado das mais diferentes perguntas. Ao descobrirem, os adultos direcionaram a bronca unicamente à Val e à Marta, dizendo: “eles são adotados, mas serão os nossos herdeiros. Enquanto isso vocês serão para sempre simples empregadinhas”, reiterando o lugar que elas ocupavam no mundo pelo ponto de vista dos Ribeiro.
Em sua narrativa, essa situação parece ter sido uma grande motivadora para que Val não deixasse nunca de estudar. Após se formar no Magistério, Val prestou o concurso para ser professora da Secretaria de Educação do Distrito Federal e logo foi aprovada. Sua aprovação coincidiu com o seu casamento, que fez com que ela regressasse para Formosa. Entretanto, sua relação com os Ribeiro não se desfez aí. Um dos seus filhos foi batizado pelos filhos de sua madrinha e, em uma situação um tanto quanto inusitada para esse padrão de sociabilidade, o inverso também ocorreu.
As relações entre eles continuaram se entrelaçando a partir dos apadrinhamentos mútuos de casamentos, especialmente entre Val e Laura, a filha da sua madrinha, e com quem a relação seguiu muito próxima ao decorrer dos anos. Ao narrar suas memórias, Val vê com afeto a conexão que ambas desenvolveram, tendo a primeira desenvolvido um papel de proteção frente à segunda, especialmente em relação às brigas que Laura e seu irmão travavam na época em que Val morava com eles. Também, Val aponta que sempre que precisou, Laura estava pronta para ajudar, como quando ela precisou custear as mensalidades da sua faculdade, demandada pela Secretaria de Educação como condição para que continuasse como docente. O contrário também foi/é uma realidade, estando Val sempre disposta a ajudar Laura. Há quem diga que as duas são mais irmãs do que Laura e Rodrigo, tamanha a proximidade que elas construíram.
Ao decorrer das suas pouco mais do que 5 décadas de vida, Val teve dois filhos, casou-se, separou-se, reaprendeu a ser amada por um novo companheiro, tornou-se uma das professoras mais queridas (e competentes) da escola onde ela trabalhou por quase 3 décadas alfabetizando gerações de crianças e, após quarenta anos de trabalho contínuo, conquistou a sua aposentadoria –um dia de emoção para todos. E é a educação –que foi o motor para transformação da sua vida e que possibilitou que ela não estivesse até hoje vivendo em condições de trabalho doméstico análogo à escravidão, como aponta a reflexão feita por ela que intitula esse trabalho –que ela compreende como a mais importante herança que pode deixar para os seus filhos, uma vez que o diploma é a única coisa a qual ninguém tiraria deles. O diploma,ao fim e ao cabo, é visto como um valor moral, uma vez que a educação é vista por Val como um meio de ascensão social, o que o trabalho por si só não garantiria.
Foi através da educação que ela encontrou uma das maiores surpresas da sua vida. Um dia, ao refletir sobre as transformações que a pandemia da Covid-19 impôs às vidas de todos, disse: “a vida é mesmo cheia dos inesperáveis. Quando eu ia imaginar que eu teria um filho fazendo doutorado?”. O mais curioso de tudo é que apenas um dos muitos descendentes dos Ribeiro também conseguiu tal feito. E, enquanto aquela que seria apenas uma empregadinha conquistou um emprego estável que lhe garantiu a aposentadoria e algum descanso após tantos anos de trabalho –muitos deles não remunerados –, parte dos herdeiros seguem sendo unicamente o que esse título nos diz: pessoas que aguardam a morte dos seus pais para, enfim, colocarem as mãos na herança –embora alguns deles já tenham acabado com parte substancial da herança da família ainda com seus pais vivos.
Não quero, aqui, fazer uma ode à meritocracia e dizer que Val conquistou tudo que teve às custas de muito trabalho duro. Val, a personagem central dessa narrativa, é a exceção da exceção à regra na realidade brasileira, que encontra na intersecção entre gênero e raça uma máquina de moer gente e sonhos. Como já apontado, ela é a única dos dez filhos de Dona Maria que conseguiu concluir o ensino básico e, mais do que isso, a única que concluiu o ensino superior em um período no qual ela saía cedo de casa para trabalhar, chegava no final da tarde com um curto tempo para tomar um banho, alimentar-se e rapidamente correr para a faculdade, vendo seus filhos com mais vagar aos finais de semana. Felizmente uma boa parcela dos seus sobrinhos, assim como seus filhos, conseguiu cursar o ensino superior, mas esta ainda não é a realidade de todos.
Mesmo que Val tenha transformado a sua própria realidade social e a de seus filhos através dos estudos, isso não impede que até hoje Rodrigo, o filho da sua madrinha, sinta-se à vontade para falar com ela no imperativo, achando que a mesma está lá para servi-lo. Toda essa situação só reflete que a noção do “como se fosse da família” ou “ela é a minha filha preta”, como Val já ouviu da sua madrinha, está fortemente encrustada nas relações ali tecidas. Mas, para melhor desenvolver esse raciocínio, passemos para o próximo tópico
O compadrio rural como reminiscência da escravidão
A literatura das ciências sociais aponta que as práticas de fostering –ou circulação de crianças –(LOBO, 2013) e de eufemização da exploração laboral doméstica precariamente remunerada por meio da ideia do “como se fosse da família” (COLLINS, 2007; MOGUÉROU et al, 2018; SILVEIRA, 2011) não são questões exclusivas do contexto brasileiro. Contudo, no caso aqui descrito, é interessante direcionar o olhar para a forma como esses dois fenômenos acabam por se entrecruzar em um momento muito específico da história político-social brasileira: o pós-abolição. É de amplo conhecimento que as sucessivas leis criadas ao decorrer do século XIX para cercear as práticas formais e legais de escravidão negro-africana não garantiram, após o fim desta, uma reparação econômica nem possibilidades de integração social aos ex-escravizados e seus descendentes.
Muito pelo contrário, foi visto um intenso processo de discussão de práticas eugênicas e promulgação de leis higienistas que mitigaram ainda mais as possibilidades de existência da população negra brasileira, entrando em curso uma nova faceta das práticas que Abdias do Nascimento (1978) denominou de genocídio do negro brasileiro. Em um contexto necropolítico no qual essa população foi (e continua) largada à própria sorte pelo Estado brasileiro para padecer em situação de precariedade, vimos, no contexto rural, uma divisão social do trabalho com base no gênero ser reproduzida, na qual os homens trabalhavam na agricultura e as mulheres no serviço domésticos, ambos para as mesmas famílias terratenentes, que seguiram vendo as populações negras que para elas trabalhavam pela lógica escravocrata. Isso ocorre porque, como aponta Silvio de Almeida (2019), o racismo é a lógica pela qual as relações na sociedade brasileira estão estruturadas e é apartir da raça que o lugar das pessoas no mundo será definido.
Nisso, era preferível para algumas dessas pessoas a submissão a condições de trabalho análogas à escravidão do que viver à própria sorte em um mundo no qual o racismo antinegro gera pouquíssimas condições de vida para elas. Assim, no pós-abolição, vemos a intensificação de uma prática que moldaria a nova faceta da dominação racial em solo brasileiro: se antes brancos detinham o poder sobre os negros porque os últimos eram considerados objetos de pertença dos primeiros, essa relação se atualiza e a hierarquia entre ambos se mantém a partir dos laços de compadrio.
No caso de Val, gerações das duas famílias se interligaram por meio do compadrio. O compadrio era uma forma de as famílias pobres garantirem proteção de um grande senhor de terras, assim como emprego, e por parte dos poderosos este atuava como um arregimentador de gente. Levando em consideração que o econômico e o político muitas vezes se mesclavam, como era o caso do patriarca dos Ribeiro, ter muita gente à sua disposição era também uma forma de garantir a fidelidade política em tempos de coronelismo.
Fazer do parentesco o elo que une esses dois grupos sociais tão distintos passa a ser, então, a tática perfeita para suavizar, no âmbito do discurso, a violência que perpassa as relações que estão em jogo. E, logicamente, não é o parentesco por excelência. No Brasil, essas famílias herdeiras prezam pela “pureza racial” e são altamente endogâmicas. Não à toa o patriarca e a matriarca dos Ribeiro eram primos de primeiro grau. Como bem postula Schneider (2016, p. 34-5, 40-1) em sua obra acerca do sistema de parentesco das classes médias brancas estadunidenses, o modelo de parentesco euro-estadunidense (do qual somos herdeiros) preza muito pelas relações sanguíneas, decidindo quem são os parentes pela ordem do sangue e aqueles que são por ordem da lei.
Aqui, em uma sociedade altamente católica, temos também aqueles que são parentes por ordem divina (e ritual!), ou seja, pelo batismo. Isso porque, dentro das formas
de organização social, o parentesco é uma daquelas que “permite às pessoas viverem juntas e cooperarem umas com as outras segundo certa ordem social” (RADCLIFFE-BROWN, 1982, p. 13), não sem tensões, controle e prática de dominação pautadas em algum modelo de hierarquia, neste caso a racial. E o que há de mais potente para a docilização dos corpos em nossa sociedade do que as relações de parentesco? Aqui, a laços de parentesco construídos através de laços rituais (o batismo), que geram laços de compadrio, acabam intensificando relações de obrigação e dominação baseadas na raça. É a sofisticação da atualização do racismo na sociedade brasileira e as formas como ele encontra de se mascarar –o que não faz dele menos violento.
Embora estes sejam vinculados eternamente pelos laços de Deus, eles formam uma relação de parentesco um tanto quanto mais frágil, visto que a relação não foi sacralizada pelo sangue e nem pela legislação, o que não garante os direitos (e os deveres) que aqueles parentes assim legitimados possuem pelos olhos da sociedade. Desta forma, permite-se intensificar a hierarquia entre eles através da adjetivação das relações. As afilhadas, como Val, que vão morar com as suas madrinhas na promessa de que na cidade grande elas poderão estudar –promessa essa raramente cumprida –são quase da família. Podem até ser consideradas como filhas de alguma forma, mas são filhas pretas, ou seja, filhas, mas de uma categoria muito inferior se comparado com os legítimos herdeiros.
Vale retomar que o parentesco é, sobretudo, uma relação dadivosa estabelecida entre desiguais e que, neste caso, atua para legitimar as formas de dominação racial a partir das quais a estrutura do prédio que se chama sociedade brasileira teve sua base construída. Por isso, se a sociabilidade das grandes e pequenas cidades brasileiras está ancorada no “você sabe com quem você está falando?”, que na análise de Roberto DaMatta (1986) mostra a emergência da hierarquia no cotidiano que o suposto homem cordial brasileiro não teria, proponho perceber como as relações de parentesco fundadas nesses vínculos dadivosos desiguais baseados no compadrio estão condicionadas a um outro ato elucubrativo , o do “você vai fazer tal coisa depois de tudo que ele/a fez por você?”.
Essas relações são construídas pela eterna dívida que afilhadas teriam com as suas madrinhas e padrinhos, que lhe deram casa, comida e, quando muito, educação. Por outro lado, todo o trabalho doméstico não-remunerado despendido por meninas e moças como Val são lidos, no seio dessa relação de parentesco, pela via do amor e da gratidão por tudo que elas “receberam” e a quem elas devem ser gratas por tudo que elas conquistaram. Isso porque, sendo o parentesco construído a partir de uma terminologia que requer um conjunto de ações, comportamentos e atitudes especificas de um parente para o outro, e a gratidão passam a ser marca da postura que a afilhada deve assumir frente à sua madrinha/padrinho.
No entanto, vale trazer a célebre frase dita por Silvia Federici ao pensar a exploração patriarcal em cima do trabalho doméstico desempenhado por mulheres “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”.2Todavia, todo esse trabalho, que entendo aqui como um trabalho análogo à escravidão, não é visto pela sociedade brasileira que está afundada até hoje na lógica da demagogia, digo, democracia racial, como trabalho. Dentro da nossa estrutura familiar, o trabalho realizado no âmbito do grupo doméstico e em prol do mesmo é eufemizado como cuidado, amor, entre outras lógicas marcadas pelo sentimento, o que, na ótica das imagens de controle elaboradas por Lélia Gonzalez (2020), mantém a mulher negra como esse ser sem individualidade, mas ocupando o eterno lugar de mãe-preta dos filhos da casa grande.
Por essa razão, se o modelo de parentesco baseado no compadrio que aqui analiso é fortemente fundado no biológico para manter a hierarquização entre os dois grupos, terratenentes e peões/empregadas, acho que pensar essa família brasileira herdeira das elites agrárias pela via da família nuclear patriarcal, como propõe Schneider (2016), é tentar encaixar cubo em cilindro. Enquanto nas famílias observadas por Schneider há uma reprodução da dominação masculina, na qual a mulher/esposa gere as atividades domésticas, no cenário aqui analisado é necessária uma figura exógena a essa realidade, pois mesmo quando a matriarca das famílias terratenentes é responsável por gerir o cotidiano do mundo do doméstico, é preciso a figura de uma (ou mais) mulher(es) negra(s), que vai(vão) ser tratada(s) como se fosse(m) da família, que fará(am) todo o trabalho –e que dificilmente receberá(am) os créditos por ele.
Aqui, acredito que é muito mais interessante pensar essas formas de construção do parentesco pela via dos grupos domésticos, proposta produzida por Meyer Fortes (1974) que nos ajuda a pensar essas relações de forma processual, assim como o parentesco para além daqueles que formam o núcleo da família, incluindo escravizados e demais pessoas que vivam na propriedade da família.
Pensar essa forma de parentesco originária das relações de compadrio, que por sua vez estão fundadas nas reminiscências da escravidão brasileira, faz com que percebamos que, ao fim e ao cabo, meninas e moças como Val são vistas como propriedade dessas famílias, que podem ser “levadas”, “emprestadas” ou “herdadas” por parentes e amigos, como o próprio caso de Madalena, que abre este trabalho. Não à toa o lugar de Val quando ocorriam as reuniões familiares dos Ribeiro era (ou ainda é?) sempre na cozinha, sendo o seu trabalho “emprestado” para os anfitriões. Pensar essas relações por via do grupo doméstico nos possibilita visualizar que não apenas meninas como Val, mas também suas mães, irmãs, pais e irmãos tiveram suas vidas marcadas por trabalharem de forma não ou pouco remunerada para famílias como a dos Ribeiro em nome desses laços de compadrio. Por essa razão, proponho que a ideia de como se fosse da família, lugar limiar que essas meninas, moças e mulheres negras sempre ocupam na estrutura familiar das elites brancas, não reflete apenas um mero eufemismo. Essa expressão atua justamente para tornar nebulosa a relação que se estabelece a partir do compadrio, que forma um parentesco mais frágil do que aquele desenvolvido pela descendência e pela aliança, assim como para matizar as violências intrínsecas a ela.
A ideia do como se fosse da família emerge também na obra de Patricia Hill Collins (2007), que ao analisar a história de Mildred, empregada doméstica afro-estadunidense apresentada na obra “Like One of the Family”, percebe que
o qualificador ‘como’ é essencial aqui, pois sinaliza o poder da Sra. C. [patroa de Mildred] de definir o que significa família e posicionar Mildred dentro de sua concepção de família normal. Desde que Mildred conheça seu lugar na família como uma trabalhadora subordinada, ela pode ficar. (COLLINS, 2007, p. 29).
No caso aqui analisado, o como se fosse da família é uma das ferramentas que viabilizaram a atualização do racismo brasileiro no pós-abolição. Se antes disso as mulheres escravizadas que trabalhavam nas casas grandes eram parte das famílias brancas por serem propriedade delas, agora as descendentes dessas mulheres tornam-se quase da família por meio dessa ambígua, assimétrica e hierárquica relação de parentesco que é o compadrio entre terratenentes e seus empregados. Isso porque, como aponta Carsten (2014, p. 106, 115), o parentesco é também marcado por violações de promessas e intimidades, atos de violência física e simbólica, se dissolve e reconfigura a partir dos desejos dos envolvidos. O parentesco é interdependência e necessidade. E pensar na importância da temporalidade do parentesco proposta por Carsten é, ainda, entender como as estruturas de dominação também se atualizam a partir dele –no caso aqui analisado, aquela que intersecciona gênero e raça.
Na atualização do racismo, as senzalas também são atualizadas em cidades modernas como Brasília por meio dos quartinhos de empregada, os quartos de despejo,
onde as indesejáveis são escondidas dos olhos da família de comercial de margarina. Que muitas vezes, como foi o caso de Madalena, tira essas mulheres do convívio de suas famílias e a possibilidade de formar a própria. Que controla a vida sexual delas, mas que não as protege de situações de assédio dentre a parentela dos donos da casa. Mulheres como Val são vistas como se fossem da família nessa atualização do racismo brasileiro não porque o colonialismo português que imperou no Brasil foi mais brando que os demais. Muito pelo contrário!3Devido à escassez de mão-de-obra para realizar trabalhos tão precários, precisou lançar mão de ferramentas de dominação como essa para garantir a sua continuidade no Brasil republicano.
No fim das contas, o mais curioso é que se essas mesmas elites político-econômicas brasileiras seguem legitimando as suas ações “em nome da família brasileira” e contra a sua destruição pelos “inimigos internos”, como apontam Lobo e Cardoso (2021), essas mesmas elites não se constrangem em tirar a infância –que elas dizem tanto defender –de meninas negras, que trabalharam de forma análoga à escravidão na cozinha das suas casas. Eles parecem se esquecer que essa dita “família brasileira”, composta por papai, mamãe e seus filhos, só atinge o seu “sucesso” graças ao trabalho não-remunerado de várias meninas negras ao redor do nosso país, que ao serem esquecidas na historiografia nacional em seus quartinhos de empregada, sentem na pele os efeitos do “tempo do cativeiro”, que parece distante, mas que ainda se reproduz nas relações aqui descritas (BRANDÃO, 1977). Da falsa abolição, que parece nunca chegar para elas.
Todavia, felizmente os tempos estão mudando. Acredito que nós, pessoas negras ingressantes nas universidades ao decorrer dos últimos anos, especialmente a partir das políticas de cotas para negros, firmamos um compromisso coletivo em dizer que “nada será como antes, hoje mesmo” (VENANCIO; LIMA E SILVA, 2021, p. 12). Decidimos contar as histórias por um outro ponto de vista, sem ser aquele que vê o mundo sentado nas varadas das casas grandes. Por meio deste compromisso, jovens advogadas negras vêm denunciando as violações nos direitos de empregadas domésticas e a continuidade das práticas escravocratas no desempenhar deste trabalho (ALVES, 2017; LOPES, 2020). E é a partir de movimentos como esses que a história de Val pode ser contada aqui por seu filho, Vinícius, que será o primeiro doutor dentre os netos de Dona Maria, à despeito de tudo aqui narrado. E assim, seguir o ensinamento de Conceição Evaristo: nossa história não foi escrita para ninar os da Casa Grande e sim para acordá-los de seus sonhos injustos”.
Vinícius Venancio, Universidade de Brasília
Professor voluntário na Universidade de Brasília. Doutorando e Mestre (2020) em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Integra os Grupos de Pesquisa de Etnologia em Contextos Africanos e de Etnografia das Circulações e Dinâmicas Migratórias e o Comitê de Estudos Africanos da ABA. Atualmente realiza pesquisa sobre circulações e trajetórias de mulheres oeste africanas em Cabo Verde, país onde/sobre o qual realiza pesquisas desde 2016.
Texto publicado em: Equatorial “Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social” e autorizado pelo autor.