Extrema direita fincou os dentes em Marcelle Decothé para tentar arrancar Anielle Franco do governo
Ataques à ex-assessora do Ministério da Igualdade Racial que ofendeu torcida do São Paulo querem abrir caminho para a derrocada de Anielle Franco. OCÊ DEVE TER VISTO O POST da então assessora de Assuntos Estratégicos do Ministério da Igualdade Racial, Marcella Decothé, chamando a torcida do São Paulo de “descendente de europeu safade”. O comentário indecoroso acabou com sua carreira no Executivo e lhe rendeu intensos ataques, incluindo acusações de que a jovem negra e periférica seria racista. O que talvez tenha te escapado é que o linchamento de Marcelle tinha um objetivo maior: abrir caminho para que sua chefe, a ministra Anielle Franco, fique mais vulnerável às investidas da extrema direita. A postagem de Marcelle foi feita no domingo e referia-se à final da Copa do Brasil, entre Flamengo e São Paulo. Dois dias depois, a assessora, que ocupava um cargo chave em uma das pastas mais necessárias para corrigir a injustiça histórica do racismo, foi exonerada. Há quem diga que o caso teve uma repercussão desproporcional. O que eu vejo é um alerta. Não há dúvidas sobre a infelicidade do post de Marcelle, que revela um descompasso pessoal com seu compromisso institucional. Mas sua exposição e os ataques sofridos são um aviso para as pessoas negras desse governo: elas não terão paz até que saiam da política. Como a sociedade brasileira vive se escondendo atrás de eufemismos, evitando enunciar os problemas e desigualdades que doem, “desproporcional” é uma ótima palavra para disfarçar o racismo nos ataques à assessora. A reação “desproporcional” é a vingança dos chamados outsiders de 2018 contra uma nova geração de outsiders, que chegou ao Executivo este ano. Os primeiros já são conhecidos: extremistas, violentos, antidireitos, anticultura, neoliberais, homens macho-alfa com porte de arma, que diziam detestar a política tradicional e amavam a liberdade de expressão irrestrita para ofenderem pobres, negros, gays, favelados e outros grupos que, na visão deles, eram “tudo vagabundos”. Essa gente invadiu o mundo da política pelo portal bolsonarista e represou seu ódio racista em 2020 e 2021, acuada pela pressão global dos levantes antirracistas que vieram no rastro do assassinato de George Floyd. Com a derrota de Bolsonaro, essa primeira leva de outsiders deixou o Executivo federal. Foi substituída, então, por uma nova geração de outsiders, que passou a ser governo com o esforço – muito mais simbólico do que efetivo – de Lula de dar algum grau de diversidade à sua gestão. Essas são as pessoas que que foram às ruas durante a pressão global antirracista. As que lotaram o funeral de Marielle Franco, enquanto os antigos outsiders quebravam placas com o nome da vereadora. As que tomaram as ruas dos Complexos do Alemão e da Maré, em apoio à candidatura de Lula. As pessoas gays e trans tão humilhadas, os cotistas tratados como peso para a sociedade, os indígenas, negros e negras acuados como “mimizentos”. Mas há uma diferença crucial entre esses dois grupos de outsiders. O primeiro estava muito mais conectado com a política tradicional que alegava desprezar, muito mais acolhido na estrutura de poder. A violência deles, inclusive, ainda é necessária para blindar os decanos da política conservadora. O segundo grupo é realmente bloqueado dos cargos decisórios. Assim, sobre Marcelle, não pairou uma repercussão desproporcional, mas uma máquina de moer pessoas como ela: jovem, negra, periférica, ativista de direitos humanos e desconhecida pela política, um corpo estranho nas entranhas do poder. Por isso, digo que isso tudo é muito menos sobre Marcelle, e mais sobre um projeto de destituir esses corpos estranhos. E o próximo alvo, ao que tudo indica, deve ser Anielle Franco. ‘Vamos para cima da Anielle’ A primeira investida da extrema direita e da mídia não foi contra Marcelle Decothé, mas sim contra Anielle Franco. Em um tweet já apagado, o deputado estadual Guto Zacarias, um homem negro do União Brasil paulista e do MBL, escreveu, se referindo a Marcelle Decothé: “A pelega já caiu, agora só falta quem colocou ela lá. Vamos pra cima da Anielle!”. Os ataques contra a ministra da Igualdade Racial se intensificaram em 24 de setembro, quando ela usou um avião da Força Aérea Brasileira, a FAB, para ir a São Paulo assinar o protocolo de intenção de combate ao racismo no futebol. Se ela devia ou não ter evitado os custos do uso de uma aeronave da FAB pegando um voo comercial é um debate que pode ser feito. Mas não houve qualquer ilegalidade: Anielle é uma ministra de estado e participava de um ato institucional, portanto, tinha direito ao voo. O Estadão, contudo, fez diversas reportagens (1, 2, 3, 4) sobre o tema, insistindo numa indução de que Anielle fez e segue fazendo algo errado e não deve se manter no cargo. Em 27 de setembro, o jornalista José Roberto Guzzo afirmou que “Anielle Franco é um desastre do começo ao fim”. No rastro do jornal, muitos veículos de imprensa, do ecossistema da extrema direita à grande mídia, repercutiram o caso com títulos que não enfatizavam a missão institucional do ministério, mas sim a final da Copa do Brasil. Quem não leu mais que os títulos está convicto de que Anielle prevaricou ao usar o avião da FAB para dar um rolê em São Paulo. Essa espera de um erro de gravidade questionável para dar início a um ataque sistemático contra pessoas negras valeu para Margareth Menezes. A ministra da Cultura foi acusada de “inexperiente” em suas primeiras semanas no comando da pasta, depois de uma investigação sobre supostas dívidas de sua organização na Bahia. Vale também para o ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, que precisou ser fortemente blindado pela sociedade civil, e especialmente pela comunidade negra, para que não fosse rifado pelos acordos entre PT e o Centrão. De maneira dissimulada e desonesta, praticamente todos os textos sobre o caso de Anielle Franco fizeram questão de ressaltar que, ao contrário dela, Almeida foi ao mesmo evento em avião comercial. Faltou dar ênfase ao fato de que a pasta de Silvio Almeida não estava envolvida no ato, mas apenas as de Esportes e de Igualdade